Monday, August 21, 2006

DE UM LIVRO DE CARTAS IMAGINÁRIAS (UM)

Amigo Poppe!

Ando em busca de uma alma Goytacá. Já sei apreciar as tardes lindas que anda fazendo por aqui. Talvez numa delas encontre vagando entre insetos voadores, num acesso de exasperação comigo mesmo, num sentimento de desacordo com o tempo, enfim, uma alma acesa e livre que me pertença, que tenha sempre me pertencido mesmo depois que a perdi. Faz tempo que busco, faz tempo que a perdi. Não sei se no momento em que a encontrar, ou mesmo no percurso intemporal de minha busca, vou me tornando um desses a que se chama de campista. Curioso é que, nos bailes da minha primeira juventude, a rivalidade entre cidades impunha um ditado: “campista, nem fiado nem a vista”. Mesmo depois que outras juventudes vieram e se foram, que veio afinal a idade adulta, o ditado permaneceu: “campista, nem fiado nem a vista”...

Procurei ainda há pouco uma alma Puri, que, segundo a literatura, até o século XIX era uma raça de antropófagos. Terei encontrado? Itaperuna, antiga aldeia Puri, é também palavra que expressa uma busca: “caminho da pedra preta”. Procurei pelos caminhos tortuosos e escuros da pedra preta (a Pedra da Elefantina, próximo a Porciúncula, no extremo noroeste fluminense), uma alma Puri, mesmo que antropófaga, talvez autofágica, não importa, mas uma alma gulosa. Uma alma que errasse em busca da identidade e da chama. Procurei no trabalho, na gandaia, na poesia, na política... Deixei crescer os cabelos, cortei, cresceram de novo, permiti e tirei a barba muitas vezes... Até que, de tudo, restou somente a dúvida. Foi aí que mudei. Daí troquei o destino de Puri pelo de Goytacá, se é que terei destino algum...

A verdade, Poppe, é que ainda busco. O que? não sei. A minha sorte; a minha espada, como diriam os magos de Paulo Coelho; o meu dom. Carrego uma estranha sensação de que falta realizar aquilo a que vim. Assim: como se o jogador de futebol que não fui, pudesse ser; como se o poema que ainda não escrevi, pudesse escrever. Sim: praticarei tai-chi chuan qualquer fim de tarde desses; lerei o Ulisses, de Joyce, quando acalmar; aprenderei o inglês, falarei fluentemente o francês, em breve; retomarei a correspondência interrompida... Bem, pelo menos isso agora estou fazendo: ponto pra nós dois, Poppe, pelo mútuo projeto que se realiza.

Temi que não se realizasse. Falando sério, houve um tempo em que sonhei que você tinha morrido. Fiquei com medo de procurar e ter que confirmar a notícia (teria morrido de quê? não importa, de ausentar-se. Lembra o poema de Bandeira “A Mário de Andrade ausente”?

Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
)

Fui algumas vezes a Niterói e imaginei: está ocupado, batendo uma bola no Cinco de Julho. Iniciei algumas cartas que não ousei concluir. Todo esse tempo sem comunicação, meu velho, foi de certo modo um tempo de perda. Até que, um dia, você ligou. Pude tranquilamente voltar a Niterói sem lhe procurar porque, de fato, você estava ali, no meio-de-campo, ajeitando a bola com classe, como sempre.

No meio-de-campo e entre palavras. Entre “Corações Passageiros” (que li primeiro e só um tempo depois pude continuar lendo o resto): “O olho a seguir a ave / como outra ave” é uma pedra preciosa que catadores de conchas encontrariam no fundo da Baía da Guanabara. Catadores imaginários de conchas improváveis, que só você via naquela manhã sobre a ponte. Ponte que os ingleses construíram e sobre cujo vão central, com impontualidade nada britânica, o redivivo funcionário dos Correios e Telégrafos pode avistar ao longe na incerteza de um projeto...

literário, ou seja, de vida, naturalmente...

a ave e seu vôo; como o braço e esse grande abraço.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Meu querido, essa carta é uma das coisas mais lindas que você já escreveu... e olha que já foram tantas!
Parabéns! Bjo.

6:14 AM  
Anonymous Anonymous said...

Isso é saudade. Sei o que é isso.
Muito bonita a carta.
Finalmente nos deu o privilégio da acessibilidade a seus textos... vou divulgar hein!
Um abraço.

6:30 PM  

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