Sunday, August 27, 2006

DURANTE A TRAVESSIA (Enquanto espero a tese de Ana Cléa)

1

Que coisa boa poder ler esse seu texto! Sobretudo, que delícia assistir ao movimento de seus sujeitos, escutar suas falas que ensinam e aprendem, acompanhar a maneira como explicitam concepções, formulam problemas, ensaiam respostas, constroem convicções, enfim... Você foi extremamente feliz nessa apreensão! Da condição de alunos da licenciatura em Biologia da FFP / UERJ à de professores de Biologia na Escola, felizmente eles puderam encontrar uma pesquisadora com sensibilidade para acolher e amplificar suas vozes.

Penso que entendi isso: seu texto caminha de referências centradas no Curso para referências focadas na experiência escolar e docente. Aliás, elas bem poderiam ser retomadas no final, para estabelecerem regularidades ou teorizações acerca das tensões entre a formação do Biólogo e do Professor de Biologia. Isso talvez evitasse o sentimento de relativa impotência e desânimo do último parágrafo (“não terá uma solução teórica”, “dificilmente este modelo conseguirá suplantar os problemas históricos que enfrentam...”), de resto incoerente com tudo que você faz quando analisa sentidos e produz significados novos.

Mas eu agradeço muito a você, Aninha, pela oportunidade que me obriga a pensar melhor sobre um problema que vinha me ocorrendo desde a semana passada. A rigor, ele me surgiu durante uma aula de Prática de Ensino no Curso de História da FAFIC. Um modo mais geral de apresentá-lo seria o seguinte: creio que muitos dos nossos discursos sobre a Escola e sobre a Docência, pronunciados durante a Formação Inicial de Professores, produzem respostas de nossos alunos que oscilam entre a ingenuidade distante e um realismo de senso comum.

Ou eles são apenas incorporados idealizadamente como uma visão externa da Escola e da Docência (e depois confrontados com a dura realidade, produzindo frustrações e desencanto) ou são confrontados imediatamente com supostas evidências da realidade empírica, vividas na prática, autorizando e confirmando aquela velha máxima de que a teoria, na prática é... Bem, deixa pra lá! No primeiro caso, nossos formandos ignoram a Escola que se vê do lugar dos professores; no segundo caso, eles já estão dando aulas e agindo como professores práticos. Em cada caso, o que dizer na condição de formador?

2

Concretamente, uma aluna do 7º Período procurava contrapor aos meus argumentos – de que a Escola produz conhecimentos e saberes próprios, que são valiosos e precisam ser compreendidos – uma história de equívocos escolares, no entendimento dela: um aluno de 15 anos, portador de Síndrome de Down, que não conseguia ser alfabetizado, vinha sendo mantido na turma de alfabetização apenas para não perder o contato com as outras crianças. No entanto, com mais idade que a média da turma, ele não aprende nada, agride as crianças menores, fica nu na presença delas, enfim, atrapalha o ritmo considerado normal da aprendizagem de todos.

– Que fazer? – perguntava ela. Mas a resposta já estava pronta. Aliás, a resposta talvez já estivesse pronta para muita gente, convergindo precisamente para este ponto: é preciso tirar o menino de lá! Os pais concordam; os moradores da vizinhança da escola, do bairro, da cidade, quiçá do país, talvez concordassem também. É possível que passasse pela cabeça de alguns poucos a dúvida sobre o que fazer com aquele menino depois que ele fosse retirado de lá. Ou, quem sabe não fosse melhor esquecer? No entanto, Ana Cléa, se todos têm o direito de pensar assim, ou até mesmo de não pensar em nada, certamente os professores não, por força da profissão e por dever de ofício.

Que fazer? Ora, não me parece que sejamos professores apenas para lidar com a rotina da profissão. Quando um médico visita um doente para o qual clinicamente há muito pouco a ser feito, quando um advogado aceita defender um criminoso confesso ou quando um engenheiro tenta em vão conter a violência do mar que insiste em avançar sobre a cidade, também eles estão diante de importantes dilemas éticos (e não apenas técnicos) de suas respectivas profissões. Não é, pois, porque vivemos dramas como esse que a Docência é uma profissão diferente das demais, pelo contrário: por isso ela é uma profissão!

Nossa formação profissional, tanto inicial quanto continuada, deve nos proporcionar conhecimentos especializados para que possamos encarar esse problema, por exemplo, de um ângulo particular, com uma sensibilidade especial, encontrando, por isso mesmo, soluções absolutamente diferenciadas daquelas propostas pelo senso comum. Se tenho sempre, como profissional, o mesmo ponto de vista para um drama educacional que teria qualquer outra pessoa ou qualquer outro profissional de outra área, então por que sou profissional? Qualquer um não poderia, afinal, estar em meu lugar?

Enfim, estaríamos formando a aluna do 7º Período de História para ser intuitiva, espontânea, prática, tristemente ingênua ou, talvez, fatalmente realista com a Escola e a Docência? Para emitir os mesmos juízos de senso comum? E o que fazer com a quantidade de História que ela certamente aprendeu ao longo desses últimos quatro anos? Ensinar aos alunos daquela boa turma que restou depois que a Síndrome de Down foi banida do convívio dos normais?

3

Bem, Aninha, fico daqui pensando nos seus ex-alunos, agora professores, ainda ostentando a dúvida identitária entre a Pesquisa e o Ensino, entre o Laboratório e a Escola. Pensando se estaríamos insistindo o suficiente, e com os meios adequados, para que outras Alines descubram a vocação para a Docência (e, se possível, bem antes do 7º Período). Pensando, ainda, no caráter especializado da aprendizagem para a pesquisa e no espontaneísmo com que muitas vezes tratamos o aprender a ensinar. Como se ensinar fosse mesmo um dom, uma questão de bom senso, ou melhor, de bom senso comum...

Pensando, mais, no quanto ainda há por se descobrir e por fazer, no sentido de identificar urgentes soluções teórico-práticas e superar aqueles problemas históricos que você menciona no último parágrafo. Sua contribuição inteligente e sensível é muito importante! Se eu tivesse, no final das contas, que retomar alguns eixos do seu texto para abstrair do caso FFP / UERJ e teorizar, começaria pela sua própria observação relativa à “academização” da formação inicial, que substitui a Escola e a Docência reais por concepções idealizadas delas.

Penso que essa mesma idealização contribui para constituir uma concepção abstrata de Escola, como se fosse apenas um lugar sem alma, repleto de ingredientes, recursos, alunos, objetos sem cheiro ou sabor, para onde se dirigem individualmente professores sujeitos de suas respectivas cátedras, civilizadores com seus universais prontos para lidar com alunos e manter a disciplina. Por exemplo, quando Augusto repete que, depois que a sala de aula se fecha, “o trabalho é nosso” e que “cada professor tem que achar o seu caminho”, independentemente das imposições (quase) sempre burocráticas da Escola. Um pensamento que é uma espécie de Escola contra Professor ou de Professor contra Escola.

Se as coisas já foram piores (como nos áureos tempos de Áurea, quando “não havia preocupação dos professores das disciplinas específicas em relacionar os seus conteúdos com a questão da escola”, ficando esses problemas menores por conta da inventividade inata dos professores no chão da escola), ainda persistem concepções da disciplina escolar como uma apresentação mais simples das idéias da ciência, obtidas na pesquisa, para que o aluno possa entender. O que, sem dúvida, atira a disciplina escolar e seus materiais para o território infeliz das reduções e vulgarizações didáticas.

Se as coisas já foram piores, não há porque descansar. Se já temos uma orientação um pouco menos insegura, é nessa direção, então, que precisamos seguir... Nossos instrumentos náuticos vão sendo pouco a pouco reunidos num livro de cartas e relatos de viagem e num breve manual dos navegantes, mesmo que as embarcações sejam distintas, que os percursos sejam variados e incertos e que você e eu e mais uns poucos, lendo e anotando no livro do Ensino de... Biologia, História... tenhamos pela frente não mais que horizontes...

Um grande beijo do amigo que torce incondicionalmente,
Everardo.

PS: Parabéns pela referência ao Cláudio Barbosa, logo no primeiro parágrafo. Onde ele estiver, tenho certeza de que também estará esperando a conclusão feliz de sua tese!

0 Comments:

Post a Comment

<< Home