DE UM LIVRO DE CARTAS IMAGINÁRIAS (DOIS)
(Ao Velho Poppe)
Meu rosto parece que incha aos domingos. Talvez pelos litros de cerveja tomados pela manhã. Ou então pelo sono: um sono muito parecido com o tédio. Desde criança não sei bem o que fazer com essa insubstância dos domingos. Ando pela casa a procura de algo. Tento redescobrir espaços, preencher o tempo. Depois que passei dos quarenta, piorou. Fico áspero e intratável – como o cacto do Manuel. Frio e insensível feito uma lápide.
Nessas condições inicio a carta. Quem sabe o amigo distante absolverá o que restou deste e de todos os outros domingos...
Recebi os “100 objetos para representar o mundo”. Impressionante! Mas ao mesmo tempo tão palpável! Um texto desses que a gente queria ter escrito. E que, se não fosse imodéstia dizer, sente que poderia. A revista Veja publicou um especial com os 100 fatos do milênio. Não é tão bom para o tamanho da pretensão. Diferente da ópera: a poesia é sempre muito mais democrática que o conhecimento.
Pensei num objeto que me representaria no mundo. Ou pelo qual penso que gostaria de ser representado. Trata-se de uma medalhinha oval de Nossa Senhora das Graças. Não tenho nada em casa da Santa, nem tenho devoção, se é que me entende. Mas da penumbra emerge um pequeno halo de luz, desde o passado. Pretendi que fosse obra do destino, naquela tarde, no gramado do Porto Alegre F.C. Eu retornava de um ataque malsucedido pela canhota, a cabeça baixa pelo gol desperdiçado, de repente... Quem teria perdido? Ninguém teria perdido, a medalhinha me esperava ali.
Tudo aconteceu num treino. Ainda sonhava com um futuro de futebol, veja você, Poppe! Não faz mal, perderia muitos outros gols, ainda. E assinalaria outros tantos. Persistente e crédulo. A fé deve ser assim...
Objeto nº 101: Medalhinha de Nossa Senhora das Graças
DADINHO.... Revelação.
Verdade assinalada.
O metal comum brilhando ao sol.
O gramado, o alambrado, a baliza, a cal, o suor,
o estádio e nenhum torcedor vibrante
na tarde quente.
SERPENTE... O gol perdido, a miragem,
o futuro e a fé desmentindo promessas.
DEUS............ Milagres custam muito pouco.
Sabe, Poppe, a vida me poupou de motivos para não ser persistente e crédulo. Sofri poucas perdas. Arrisquei menos que devia, quem sabe? Apenas a falta de ar denuncia ausências. E a miopia, distância. Mas não perdi, como Cleir recentemente, o pai sempre presente. Um pai sempre disponível à filha. Um pai cujo principal vício era provocar – o garçom e o genro. Era sua maneira de fazer-se presente. Aliás, em duplo sentido: de estar aqui e de ignorar o passado.
Edgar, se guardava reminiscências, ocultava todas num fundo falso da existência. Agora que ele se foi, é hora de desfazer as malas. Contabilizar os saldos. Remover o pó. Dispensar as mágoas e abrir espaço ao tempo – eis a alquimia da saudade. Em tudo que se toca, saudade. Por tudo que se lembra, saudade. De tudo que se espera, saudade. No futuro, a alquimia será ciência, resignação e esquecimento. E a saudade, um sofrer domesticado.
Enquanto isso, Poppe, a tarde de domingo se foi. Esvaiu-se, nublada e pálida, um pouco acima do edifício. Pior é se à noite chover cansaço e tédio. Então escreverei outra carta. Certamente, hermética o bastante para você, cigano, ler e decifrar. Cleir sempre me pergunta por que não trocamos restos de biscoito nos envelopes. Ela e Jisele cultivaram o hábito, longamente. Pra quê? Pra ter ainda que decifrar o sabor e a marca?
Antes de encerrar, acrescento um pequeno poema sobre perdas. Uma quadrinha antiga chamada
Compensação
Dona Flora, amiga mia,
que a sede bebeu-lhe a casa,
que a falta tomou-lhe a boda
-que um Anjo lhe empreste a asa... !
Meu rosto parece que incha aos domingos. Talvez pelos litros de cerveja tomados pela manhã. Ou então pelo sono: um sono muito parecido com o tédio. Desde criança não sei bem o que fazer com essa insubstância dos domingos. Ando pela casa a procura de algo. Tento redescobrir espaços, preencher o tempo. Depois que passei dos quarenta, piorou. Fico áspero e intratável – como o cacto do Manuel. Frio e insensível feito uma lápide.
Nessas condições inicio a carta. Quem sabe o amigo distante absolverá o que restou deste e de todos os outros domingos...
Recebi os “100 objetos para representar o mundo”. Impressionante! Mas ao mesmo tempo tão palpável! Um texto desses que a gente queria ter escrito. E que, se não fosse imodéstia dizer, sente que poderia. A revista Veja publicou um especial com os 100 fatos do milênio. Não é tão bom para o tamanho da pretensão. Diferente da ópera: a poesia é sempre muito mais democrática que o conhecimento.
Pensei num objeto que me representaria no mundo. Ou pelo qual penso que gostaria de ser representado. Trata-se de uma medalhinha oval de Nossa Senhora das Graças. Não tenho nada em casa da Santa, nem tenho devoção, se é que me entende. Mas da penumbra emerge um pequeno halo de luz, desde o passado. Pretendi que fosse obra do destino, naquela tarde, no gramado do Porto Alegre F.C. Eu retornava de um ataque malsucedido pela canhota, a cabeça baixa pelo gol desperdiçado, de repente... Quem teria perdido? Ninguém teria perdido, a medalhinha me esperava ali.
Tudo aconteceu num treino. Ainda sonhava com um futuro de futebol, veja você, Poppe! Não faz mal, perderia muitos outros gols, ainda. E assinalaria outros tantos. Persistente e crédulo. A fé deve ser assim...
Objeto nº 101: Medalhinha de Nossa Senhora das Graças
DADINHO.... Revelação.
Verdade assinalada.
O metal comum brilhando ao sol.
O gramado, o alambrado, a baliza, a cal, o suor,
o estádio e nenhum torcedor vibrante
na tarde quente.
SERPENTE... O gol perdido, a miragem,
o futuro e a fé desmentindo promessas.
DEUS............ Milagres custam muito pouco.
Sabe, Poppe, a vida me poupou de motivos para não ser persistente e crédulo. Sofri poucas perdas. Arrisquei menos que devia, quem sabe? Apenas a falta de ar denuncia ausências. E a miopia, distância. Mas não perdi, como Cleir recentemente, o pai sempre presente. Um pai sempre disponível à filha. Um pai cujo principal vício era provocar – o garçom e o genro. Era sua maneira de fazer-se presente. Aliás, em duplo sentido: de estar aqui e de ignorar o passado.
Edgar, se guardava reminiscências, ocultava todas num fundo falso da existência. Agora que ele se foi, é hora de desfazer as malas. Contabilizar os saldos. Remover o pó. Dispensar as mágoas e abrir espaço ao tempo – eis a alquimia da saudade. Em tudo que se toca, saudade. Por tudo que se lembra, saudade. De tudo que se espera, saudade. No futuro, a alquimia será ciência, resignação e esquecimento. E a saudade, um sofrer domesticado.
Enquanto isso, Poppe, a tarde de domingo se foi. Esvaiu-se, nublada e pálida, um pouco acima do edifício. Pior é se à noite chover cansaço e tédio. Então escreverei outra carta. Certamente, hermética o bastante para você, cigano, ler e decifrar. Cleir sempre me pergunta por que não trocamos restos de biscoito nos envelopes. Ela e Jisele cultivaram o hábito, longamente. Pra quê? Pra ter ainda que decifrar o sabor e a marca?
Antes de encerrar, acrescento um pequeno poema sobre perdas. Uma quadrinha antiga chamada
Compensação
Dona Flora, amiga mia,
que a sede bebeu-lhe a casa,
que a falta tomou-lhe a boda
-que um Anjo lhe empreste a asa... !
1 Comments:
Seus textos são lindos, Everardo. Que bom que teremos oportunidade de lê-los aqui!!
Que bom que esse espaço de deixar palavras, sentimentos e coisas nossas esteja cada vez mais democratizado. Não é preciso entender de linguagens de programação e coisa e tal - seguimos poucos passos e vupt! - tá lá nosso canto no ciberespaço.
Sou muito entusiasmada com isso!!
Bom te ler, bom ler Cleir.
Beijos!!
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