Wednesday, November 15, 2006

CADERNOS DA FAFIC (CINCO)

Sobre o Conceito de Cultura Escolar

A idéia de que a Escola produz uma cultura sui generis, dotada de dinâmica própria, que se relaciona de forma complexa com outras dinâmicas culturais igualmente particulares (as culturas erudita, popular, de massa, de grupos etc) no âmbito da cultura em geral da sociedade global, é uma construção relativamente recente no debate educacional. Filia-se ao desenvolvimento das teorias do currículo postas em circulação a partir dos primeiros anos da década de 1960, na Grã-Bretanha, sobre o pano de fundo da problemática das relações entre educação e cultura, como decorrência das dimensões e implicações culturais dos processos de escolarização na sociedade atual.

Num trabalho produzido na segunda metade dos anos oitenta, somente publicado no Brasil nos primeiros anos da década seguinte, Forquin (1993) propõe situar o currículo no contexto dessa problemática das relações entre educação e cultura, considerando o seguinte paradoxo: a transmissão da cultura, por um lado, tendo em vista sua conservação como patrimônio e herança passada de geração em geração, constituindo a justificativa fundamental de todo o empreendimento educacional, encontra-se confrontada, por outro lado, pela impossibilidade atual da cultura, cada vez mais “pletórica e inconsistente” (p. 10), de fornecer legitimidade para a coisa ensinada, sobretudo a partir do “discurso de deslegitimação” (p. 10) fortalecido pelas ciências sociais a partir dos anos setenta.

Em um nível mais geral e global de determinação, educação e cultura aparecem aqui como faces recíprocas e complementares de uma mesma realidade. Se a cultura (como experiência humana) consiste no que "nos excede, nos ultrapassa e nos institui como sujeitos humanos” (p. 10), então ela deve constituir o conteúdo substancial da educação, sua fonte e sua justificativa última. Mas é a educação, em sua função de transmissão e de perpetuação da cultura (como experiência humana), que permite que ela se realize como memória viva e como continuidade de nossa existência individual e coletiva.

Não obstante, nesse nível extremo de generalidade e de globalidade, a cultura simplesmente não existe em lugar algum. O entendimento da experiência humana, considerado na ordem da realidade concreta, exige um tratamento que consiste em matizar e especificar o conceito de cultura. E ainda assim, quer se considere a cultura global e geral, ou mesmo uma cultura particular tomada em sua totalidade (embora matizada e especificada), sua transmissão enquanto tal – finalidade e justificativa última do empreendimento educacional – constitui uma impossibilidade tanto virtual quanto real. A rigor, a educação não transmite a cultura, nem mesmo uma cultura, mas algo da cultura (p. 15).

Nesse sentido, então, a primeira condição de possibilidade da educação concebida como transmissão cultural consiste em admitir a exigência de uma seleção cultural. De fato, é a escola (mesmo quando se presume que seja para a escola) que se encarrega desse processo de seleção tanto sobre a herança do passado, definindo o que se conserva ou o que se abandona e rejeita por “esquecimento ativo” (p. 15), quanto sobre a experiência coletiva viva, no presente, estabelecendo o que incluir e o que excluir, segundo critérios variáveis e contraditórios. Trata-se, portanto, de decidir o que é que pode ser considerado como tendo um valor educativo ou uma pertinência social suficientemente forte para justificar todos os gastos com tal empreendimento...

A seleção cultural escolar (p. 15), embora condição necessária, é ainda insuficiente para permitir a transmissão que justifica e legitima a educação: exige-se, ainda e em seguida, a transformação dos materiais selecionados em materiais transmissíveis e assimiláveis, mediante processos de reorganização, reestruturação e transposição didática, envolvendo, por sua vez, a intervenção de dispositivos mediadores. Resulta daí a produção de configurações cognitivas escolares, estas sim, sui generis, com dinâmica própria e capaz de transcender o papel específico que lhes é reservado, bem como seus limites escolares. De fato, a cultura escolar constitui algo mais do que mera reprodução da cultura dominante ou do que simples expressão do interesse de grupos sociais.

A cultura escolar ou, por outra, tais configurações cognitivas escolares resultantes tanto da seleção quanto da transformação de elementos da cultura, possuem ainda autonomia relativa e força cultural suficiente para interagir mesmo com dimensões da cultura que se considera, por vezes, que lhes deram origem[1]. Assim, por exemplo, pode-se considerar que é, talvez, por influência da História Ensinada que o tempo histórico permanece como eixo ordenador da história, tanto em relação ao conhecimento das sociedades quanto no âmbito da história de vida; ou que é a Biologia Escolar que mais poderosamente contribui para o esforço de unificação dos diversos campos da Biologia numa ciência única.

Estaremos já em condições, então, de acompanhar Forquin (1993), senão em sua concepção stricto sensu, ao menos na ênfase lato sensu que seus argumentos emprestam ao conceito de currículo? Se o debate anglo-saxão acerca do currículo inclui, por um lado, trabalhos que se ligam “ao estudo dos fatores e determinantes extra-escolares da educação escolar (a família, os meios de comunicação, a estrutura econômica e social)” (p. 22), o interesse do autor aponta, sobretudo, para o outro lado desse debate, contemplando estudos centrados “mais na própria escola, nos processos de ensino, nos conteúdos dos programas, nos modos de estruturação, de legitimação, de transmissão da ‘cultura escolar’” (p. 22).

Ou seja, o objeto principal da abordagem (ou da ênfase) dos estudos curriculares de Forquin (1993) – uma abordagem em termos de cultura ou uma abordagem “via conteúdos” (p. 24) – parece situar-se naquilo que se expressa pelo conceito de cultura escolar. Mais do que objetos ou programas escolares, de fato, o currículo constitui “uma abordagem global dos fenômenos educativos, uma maneira de pensar a educação, que consiste em privilegiar a questão dos conteúdos e a forma como esses conteúdos se organizam nos cursos” (p. 22). Ou ainda, dizendo de outro modo, “uma teoria do currículo é uma teoria da educação considerada como empreendimento de transmissão cognitiva e cultural” (p. 24).

Finalmente, a idéia de currículo em Forquin, central para sua concepção de educação, partindo de uma abordagem cultural focada na transmissão da cultura e nos conteúdos dessa transmissão, traz para o centro do debate educacional o conceito de cultura escolar. Situada no centro da problemática das relações entre educação e cultura, confrontada por todos os lados pela insistente e paradoxal “tradição do novo” (p. 19), interpelada permanentemente pelo ritmo veloz das transformações no mundo vivido e na diferentes maneiras de concebê-lo, até quando a cultura escolar encontrará legitimidade ao mesmo tempo em que contribuirá para a continuidade e a perpetuação desse mesmo e velho e único mundo em que vivemos?

FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 206 p.

[1] Talvez se encontre aqui elementos para esboçar um questionamento ao conceito de transposição didática, de Yves Chevalard, e sua concepção restrita de disciplina escolar. Na verdade, derivando os conteúdos constitutivos da disciplina escolar do saber sábio, com ênfase em sua didática específica, Chevalard parece desconsiderar não só a totalidade da cultura sobre a qual a escola seleciona, mas também as relações complexas e de mão dupla entre a cultura escolar e aquelas diferentes dinâmicas culturais de que trata Forquin.

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