BOM DIA, ANDRAL, BOA NOITE, ANDRAL
“Bem podemos dizer que é para o branco que vai o tempo
e que o mundo nos seus derradeiros dias, extinguida a vida,
é uma enorme cabeça branca varrida pelo vento”
(Saramago, Adapt.)
Certamente ele havia percebido minha dissimulada oferta que transformava o favor pretendido em voluntária contribuição ou favor de mão inglesa, mas britanicamente, como sempre, não quis me expor diante daquilo que na verdade eu era intensamente: um pai aflito. Sustentou aquela pequena pausa entre a última sílaba ouvida com atenção e cuidado, como sempre, e as primeiras palavras pronunciadas e espaçadas por timidez, baixando ligeiramente o olhar, como se não soubesse o que sabia e estava prestes a dizer. – Sem problema!
Acho que foi sobretudo a partir desse breve momento, desse instante de seda quando um pai pede algo para seu filho no ambiente de trabalho, cheio de constrangimento e a despeito das milhares de justificativas, todas inúteis, que me tornei cúmplice, essa espécie enviezada de amigo, se me permitem, de Andral Tavares. Desde então me animei invariavelmente a caminhar alguns passos a mais sempre que o via, para provocar o encontro e dizer com gosto Bom dia, Andral, Boa noite, Andral, quem sabe esticar uma rápida conversa pelos corredores sempre cheios da Fafic.
Não saberia traçar sua biografia com a objetividade naturalmente requerida pelas normas que o gênero impõe e exige, senão aquelas de profunda simpatia e afeto, logo subjetivas. Nem se trata aqui, a bem dizer, de uma biografia que ele por certo não autorizaria, por modéstia, embora bem o merecesse, e sua história de vida confundindo-se em parte com a história da comunicação e do rádio em Campos inevitavelmente há de impor-se em alentadas pesquisas acadêmicas restauradoras e sérias. Ajeitem as lentes, candidatos a mestres e doutores, mais um capítulo dessa história houve por encerrar.
Porém mais do que tudo, talvez, olhei Andral com olhos diversos do comum olhar quando descobri seus filhos, numa qualquer manhã de sábado em que o trabalho extraordinariamente se impunha ao descanso, ou porque imerecido este em minha pobre rotina, ou ainda por ter o Criador, cuja obra inspira o calendário, descansado de fato um único e exclusivo dia na semana, não importando seu nome, se sábado, se domingo. O certo porém é que conheci o filho e as três filhas de Andral naquela pós-graduação de Docência do ensino superior e, pelo que se sabe e sabendo se diz, vendo os filhos se há de conhecer bem o pai.
Seria meia verdade apenas dizer-se que para os pais um filho não haveria nunca de crescer e mesmo crescendo não perderia jamais aquela significação de filial atributo, ainda que não lhe seja interditado opor toda maturidade do caráter que lentamente constrói a esta e a muitas mais leis ditas da natureza? Posto que não só dos pais isto depende, senão que também do filho na lenta confirmação de si, mediada embora pela herança e cultivada relação de afeto. Andral viu em vida crescer o filho e, como os antigos sábios traziam no próprio nome o lugar que lhes acolhia e proporcionava alimento às raízes, haveria também ele, o filho, de referenciar seu nome à origem paterna, humildemente acolhendo sem renúncia a alcunha no diminutivo, mas sem decréscimo, de Andral.
Tudo isso tem importância agora, naturalmente, que Andral não mais está entre nós. Não está de corpo, bem entendido, e ainda assim não há de faltar quem acredite, apoiando-se retoricamente na física quântica que, disseminada pelos espaços que freqüentou e armazenada nas emoções a que deu causa, sua energia alterne ora retornando à matéria, ora voltando ao estado de energia e transitando entre repouso e movimento, lá e cá até ao infinito, pelo que, então, ele está e não está entre nós de corpo como de energia.
Talvez por isso não me falte esperança, sem ansiedade ou sofrimento, neste ou em outro qualquer regresso à Fafic, num dia tenso de chumbo em que as coisas estiverem demandando suavidade e leveza, ou numa noite tranqüila em que simplesmente se converse palavras soltas de algodão, de que assome Andral do nada ou da energia que o nada contém, ou da brancura de seus próprios cabelos posto que se, como afirma Saramago, É para o branco que vai o tempo, será então dele também que voltamos, não me falta esperança, eu dizia, de que assome Andral fazendo retirar de nós, em voz uníssona, a corrente saudação:
– Bom dia, Andral, boa noite, Andral!
e que o mundo nos seus derradeiros dias, extinguida a vida,
é uma enorme cabeça branca varrida pelo vento”
(Saramago, Adapt.)
Certamente ele havia percebido minha dissimulada oferta que transformava o favor pretendido em voluntária contribuição ou favor de mão inglesa, mas britanicamente, como sempre, não quis me expor diante daquilo que na verdade eu era intensamente: um pai aflito. Sustentou aquela pequena pausa entre a última sílaba ouvida com atenção e cuidado, como sempre, e as primeiras palavras pronunciadas e espaçadas por timidez, baixando ligeiramente o olhar, como se não soubesse o que sabia e estava prestes a dizer. – Sem problema!
Acho que foi sobretudo a partir desse breve momento, desse instante de seda quando um pai pede algo para seu filho no ambiente de trabalho, cheio de constrangimento e a despeito das milhares de justificativas, todas inúteis, que me tornei cúmplice, essa espécie enviezada de amigo, se me permitem, de Andral Tavares. Desde então me animei invariavelmente a caminhar alguns passos a mais sempre que o via, para provocar o encontro e dizer com gosto Bom dia, Andral, Boa noite, Andral, quem sabe esticar uma rápida conversa pelos corredores sempre cheios da Fafic.
Não saberia traçar sua biografia com a objetividade naturalmente requerida pelas normas que o gênero impõe e exige, senão aquelas de profunda simpatia e afeto, logo subjetivas. Nem se trata aqui, a bem dizer, de uma biografia que ele por certo não autorizaria, por modéstia, embora bem o merecesse, e sua história de vida confundindo-se em parte com a história da comunicação e do rádio em Campos inevitavelmente há de impor-se em alentadas pesquisas acadêmicas restauradoras e sérias. Ajeitem as lentes, candidatos a mestres e doutores, mais um capítulo dessa história houve por encerrar.
Porém mais do que tudo, talvez, olhei Andral com olhos diversos do comum olhar quando descobri seus filhos, numa qualquer manhã de sábado em que o trabalho extraordinariamente se impunha ao descanso, ou porque imerecido este em minha pobre rotina, ou ainda por ter o Criador, cuja obra inspira o calendário, descansado de fato um único e exclusivo dia na semana, não importando seu nome, se sábado, se domingo. O certo porém é que conheci o filho e as três filhas de Andral naquela pós-graduação de Docência do ensino superior e, pelo que se sabe e sabendo se diz, vendo os filhos se há de conhecer bem o pai.
Seria meia verdade apenas dizer-se que para os pais um filho não haveria nunca de crescer e mesmo crescendo não perderia jamais aquela significação de filial atributo, ainda que não lhe seja interditado opor toda maturidade do caráter que lentamente constrói a esta e a muitas mais leis ditas da natureza? Posto que não só dos pais isto depende, senão que também do filho na lenta confirmação de si, mediada embora pela herança e cultivada relação de afeto. Andral viu em vida crescer o filho e, como os antigos sábios traziam no próprio nome o lugar que lhes acolhia e proporcionava alimento às raízes, haveria também ele, o filho, de referenciar seu nome à origem paterna, humildemente acolhendo sem renúncia a alcunha no diminutivo, mas sem decréscimo, de Andral.
Tudo isso tem importância agora, naturalmente, que Andral não mais está entre nós. Não está de corpo, bem entendido, e ainda assim não há de faltar quem acredite, apoiando-se retoricamente na física quântica que, disseminada pelos espaços que freqüentou e armazenada nas emoções a que deu causa, sua energia alterne ora retornando à matéria, ora voltando ao estado de energia e transitando entre repouso e movimento, lá e cá até ao infinito, pelo que, então, ele está e não está entre nós de corpo como de energia.
Talvez por isso não me falte esperança, sem ansiedade ou sofrimento, neste ou em outro qualquer regresso à Fafic, num dia tenso de chumbo em que as coisas estiverem demandando suavidade e leveza, ou numa noite tranqüila em que simplesmente se converse palavras soltas de algodão, de que assome Andral do nada ou da energia que o nada contém, ou da brancura de seus próprios cabelos posto que se, como afirma Saramago, É para o branco que vai o tempo, será então dele também que voltamos, não me falta esperança, eu dizia, de que assome Andral fazendo retirar de nós, em voz uníssona, a corrente saudação:
– Bom dia, Andral, boa noite, Andral!