Everardo de Andrade

Sunday, September 24, 2006

DE UM LIVRO DE CARTAS IMAGINÁRIAS (DOIS)

(Ao Velho Poppe)

Meu rosto parece que incha aos domingos. Talvez pelos litros de cerveja tomados pela manhã. Ou então pelo sono: um sono muito parecido com o tédio. Desde criança não sei bem o que fazer com essa insubstância dos domingos. Ando pela casa a procura de algo. Tento redescobrir espaços, preencher o tempo. Depois que passei dos quarenta, piorou. Fico áspero e intratável – como o cacto do Manuel. Frio e insensível feito uma lápide.

Nessas condições inicio a carta. Quem sabe o amigo distante absolverá o que restou deste e de todos os outros domingos...

Recebi os “100 objetos para representar o mundo”. Impressionante! Mas ao mesmo tempo tão palpável! Um texto desses que a gente queria ter escrito. E que, se não fosse imodéstia dizer, sente que poderia. A revista Veja publicou um especial com os 100 fatos do milênio. Não é tão bom para o tamanho da pretensão. Diferente da ópera: a poesia é sempre muito mais democrática que o conhecimento.

Pensei num objeto que me representaria no mundo. Ou pelo qual penso que gostaria de ser representado. Trata-se de uma medalhinha oval de Nossa Senhora das Graças. Não tenho nada em casa da Santa, nem tenho devoção, se é que me entende. Mas da penumbra emerge um pequeno halo de luz, desde o passado. Pretendi que fosse obra do destino, naquela tarde, no gramado do Porto Alegre F.C. Eu retornava de um ataque malsucedido pela canhota, a cabeça baixa pelo gol desperdiçado, de repente... Quem teria perdido? Ninguém teria perdido, a medalhinha me esperava ali.

Tudo aconteceu num treino. Ainda sonhava com um futuro de futebol, veja você, Poppe! Não faz mal, perderia muitos outros gols, ainda. E assinalaria outros tantos. Persistente e crédulo. A fé deve ser assim...

Objeto nº 101: Medalhinha de Nossa Senhora das Graças
DADINHO.... Revelação.
Verdade assinalada.
O metal comum brilhando ao sol.
O gramado, o alambrado, a baliza, a cal, o suor,
o estádio e nenhum torcedor vibrante
na tarde quente.
SERPENTE... O gol perdido, a miragem,
o futuro e a fé desmentindo promessas.
DEUS............ Milagres custam muito pouco.

Sabe, Poppe, a vida me poupou de motivos para não ser persistente e crédulo. Sofri poucas perdas. Arrisquei menos que devia, quem sabe? Apenas a falta de ar denuncia ausências. E a miopia, distância. Mas não perdi, como Cleir recentemente, o pai sempre presente. Um pai sempre disponível à filha. Um pai cujo principal vício era provocar – o garçom e o genro. Era sua maneira de fazer-se presente. Aliás, em duplo sentido: de estar aqui e de ignorar o passado.

Edgar, se guardava reminiscências, ocultava todas num fundo falso da existência. Agora que ele se foi, é hora de desfazer as malas. Contabilizar os saldos. Remover o pó. Dispensar as mágoas e abrir espaço ao tempo – eis a alquimia da saudade. Em tudo que se toca, saudade. Por tudo que se lembra, saudade. De tudo que se espera, saudade. No futuro, a alquimia será ciência, resignação e esquecimento. E a saudade, um sofrer domesticado.

Enquanto isso, Poppe, a tarde de domingo se foi. Esvaiu-se, nublada e pálida, um pouco acima do edifício. Pior é se à noite chover cansaço e tédio. Então escreverei outra carta. Certamente, hermética o bastante para você, cigano, ler e decifrar. Cleir sempre me pergunta por que não trocamos restos de biscoito nos envelopes. Ela e Jisele cultivaram o hábito, longamente. Pra quê? Pra ter ainda que decifrar o sabor e a marca?

Antes de encerrar, acrescento um pequeno poema sobre perdas. Uma quadrinha antiga chamada

Compensação
Dona Flora, amiga mia,
que a sede bebeu-lhe a casa,
que a falta tomou-lhe a boda
-que um Anjo lhe empreste a asa... !